Sobre Cassandra

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Depois de A Terceira Casa à Esquerda, na Galeria Miguel Nabinho (2015), a Culturgest mostra-nos mais uma exposição de Ana Jotta que prova que há ainda muito por revelar na obra desta artista. Cassandra, que pode ser vista na Culturgest Porto até 19 de Março, tem como ponto de partida o livro produzido a propósito da exposição que esta mesma instituição apresentou em 2014 em Lisboa. A antológica A Conclusão da Precedente (des)montou o carácter fragmentário do seu trabalho dando destaque àquilo que Jotta designa como “notas de rodapé”, isto é, um conjunto de objectos e materiais impressos de natureza bastante diversa que foi acumulando no seu atelier ao longo dos anos e que, necessariamente, reverberam no seu processo criativo. Da “casa” da artista para o espaço da obra, é sempre da confrontação entre um interior e um exterior que nunca se apresentam como totalidade ou como eternidade que trata o trabalho desta artista, todo ele de facto uma “arqueologia da intimidade”, como pôs João Fernandes (Fernandes, 2005). Essas notas de rodapé foram então reunidas num livro de artista: pedaços de jornais, banda desenhada, desenhos, manuais de instruções, recortes vários, edições antigas, pequenas notas e pensamentos, anúncios publicitários, cadernos, um sem fim de imagens desse mundo de Ana Jotta cuja lógica fragmentária parece iludir qualquer totalidade. Do interior do atelier para o espaço expositivo e, depois, novamente para o interior de um livro para, posteriormente, voltarem a sair e se verticalizarem nesta Cassandra que transforma as páginas nas paredes sobre as quais algumas obras são colocadas. O arquivo feito gabinete de curiosidades. O contraste é aparentemente total com a depuração da casa, feita linha e cor, das obras que vimos recentemente na Galeria Miguel Nabinho. A não ser que cheguemos à conclusão que o excesso dos fragmentos e memorabilia não sejam, enfim, mais do que a expansão de um espaço que navega na margem sem se querer ou ser marginal. Afinal, a casa pode ser localização mas também pode ser linha de fuga. Como Cassandra, a profetisa louca, “símbolo da recusa patriarcal em confiar na palavra das mulheres” (Macedo & Amaral, 2005), há também aqui uma voz que nos confronta com a morte (da arte? Do objecto? Da linearidade do sentido?), o desaparecimento que não parece ser evitável. Se por um lado a memória é alvo de um constante processo de recuperação, as flores hão-de sempre perecer e frustrar esse projecto. No entanto, fica sempre no ar a possibilidade de uma esperança qualquer…

 

Referências:

Fernandes, J. (2005). A Casa da Ana Rua Ana Jotta. Porto: Museu de Arte Contemporânea de Serralves.

Macedo, A. G., & Amaral, A. L. (2005). Dicionário da Crítica Feminista. Porto: Edições Afrontamento.

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